Esta cidade não é para peões

Esta cidade não é para peões
Por José Vitor Malheiros, Público, 21 Fevereiro 2012

Gosto de andar a pé. Pequenas passeatas ou grandes caminhadas, na cidade ou no campo, trajectos de todos os dias ou deambulações de fim-de-semana. O meu andar a pé não é trekking nem hiking. É só andar a pé. Às vezes mais depressa, às vezes lentamente, às vezes parado. O meu andar a pé também não é de maratonas. Posso fazer cinco ou oito ou dez quilómetros por dia (ao fim-de-semana). Raramente mais. Gosto de fazer a pé os trajectos que faço em transportes públicos. Saber a que se parece a superfície por baixo da qual anda o metro. Como são as lojas desta avenida onde o autocarro salta de paragem em paragem. Qual é a distância, em passos, que vai desta estação de metro àquele jardim.Do jardim ao café. Saber se há alguma drogaria naquele bairro. Se a retrosaria ainda existe. Durante a semana os meus passeios raramente saem de Lisboa, o que não querdizer que sejam todos urbanos. Ou sequer suburbanos. São frequentemente todo-o-terreno, um percurso de combatente, quase um parcours de parkour. E onde menos se espera. Não é preciso andar à superfície da linha vermelha do metro (que vai para a Estação Oriente, no Parque das Nações) para entrarmos num cenário pós-apocalíptico.

Estão a ver Entrecampos? Na fronteira entre a Avenida da República e o Campo Grande? Uma zona nobre e central da cidade. Há uma avenida que sai directa de Entrecampos em direcção a Sete Rios, onde está o Jardim Zoológico. Pouco mais de dois quilómetros, sempre em frente, entre dois jardins. O caminho? Praticamente intransitável. Intransitável para peões, entenda-se. É uma terra-de-ninguém, que exige atravessar corta a cidade em vias rápidas sem passadeiras, caminhar ao longo duas zonas quase de passeios inexistentes, aguentar os carros que passam a cem à hora a um metro de distância. Se digo a algum lisboeta que fiz esse trajecto a pé vias rápidas e temos dizem-me "Ah, mas isso não é para andar a pé..." "Por que não?" "Porque não foi feito para isso", dizem-me. "Por que não?" "Porque foi feito para carros." É verdade. Toda a cidade foi feita para carros. Com raras excepções, a cidade que fizemos nos últimos cinquenta anos foi feita para carros. Às vezes, há uma pequena mancha pensada para pessoas. Mas para lá chegar é preciso ir de carro. Ou, no melhor dos casos, de metro. A pé? Não, não foi pensado para isso.

Tente ir a pé da Avenida do Rio de Janeiro a Benfica. Dois bairros residenciais. Aqui já estamos no nível dos sete quilómetros. O caminho mais directo passa pela Avenida Lusíada, mas não se deixem enganar por este "Avenida". É preciso atravessar uma terra-de-ninguém, atravessar vias rápidas sem passadeiras, saltar uns separadores, conviver com o lixo e a desolação. Sempre sem sair do "tecido urbano". Mas não se pense que se trata de um via reservada a automóveis, como a Segunda Circular ou algo semelhante. Estamos na cidade. Há prédios pelo caminho, sítios onde vivem e trabalham pessoas mas onde toda a gente chega de carro. Há outros trajectos possíveis? Há, muito mais compridos, que desincentivam o andar a pé. Os caminhos directos, as "avenidas", são para os carros. Lisboa está cortada de vias rápidas que às vezes se chamam "avenidas" mas que dividem a cidade em bantustões, sítios de onde só se pode sair de casa de carro, onde as crianças não podem brincar com o amigo que mora do outro lado da rua porque o outro lado da rua ou fica a dez minutos de carro ou exige arriscar a vida num atravessamento pedonal. Temos vias rápidas a cruzar as principais praças da cidade, o Areeiro, o Marquês de Pombal, Sete Rios, a Praça de Espanha, o Campo Grande e a Avenida da República transformadas em auto-estradas. Mas cada via rápida corta a cidade em duas zonas quase incomunicáveis. Duas vias rápidas e temos quatro bantustões. Com três já podemos ter sete colonatos independentes. E isto no centro da cidade. Como é que os decisores da autarquia — das autarquias — não percebem isso? Andam de carro. Já tive discussões com "especialistas de mobilidade" lisboetas que não sabem que na Fontes Pereira de Melo, no coração da "cidade moderna", há um pedaço sem passeio, roubado quando da construção do Imaviz, onde uma pessoa de cadeira de rodas tem forçosamente de ir para a estrada. Nunca andaram ali a pé. 

Uma condição essencial para ser presidente da Câmara de uma qualquer cidade deveria ser andar só a pé durante a campanha eleitoral. Ou a pé e de bicicleta. Visto que conhecer as necessidades do trânsito automóvel já eles conhecem. Não uma tarde, a convite de uma associação de cidadãos com deficiências, com as TV à volta e todos os trajectos estudados previamente pelos assessores. Toda a campanha. Uma cidade não é assim tão grande.

Tornar as cidades amigáveis para os carros parece ser o principal objectivo dos autarcas. Cidades como no filme Cars, onde os protagonistas são carros, os amigalhaços são camiões e as raparigas giras são carros sport. É claro que os eleitores que estão dentro do carro agradecem e os que estão fora dos carros são cidadãos de segunda, mas a falta desta vivência da cidade, a pé, torna os contactos entre as pessoas mais raros, mais distantes. E a relação couraçada que os automobilistas têm entre si dificilmente se pode considerar uma relação de vizinhança. É, como gostam os neoliberais, uma relação de constante competição.

É de vias rápidas que se faz a dissolução da sociedade, da cidade, das vizinhanças, dos bairros, das relações, da solidariedade, das pessoas. Um dia vamos perceber que conseguimos chegar muito depressa a todos os sítios onde não queremos ir. Metidos em cápsulas herméticas de transporte, navegando entre o sofá da televisão e o cubículo do trabalho, com auscultadores nos ouvidos para ouvir música ou escolher a gravação da voz sintética do call center, que nos indica o melhor caminho para a solidão.







Com uma vénia de agradecimento a um dos nossos blogs preferidos.

E a um excelente jornalista que já moderou o nosso debate com os candidatos à Câmara Municipal de Lisboa. Curiosamente teve que relembrar no final, a alguns dos representantes dos partidos políticos, que eram adultos e que, para além da guerra partidária, o que se debatia naquele dia era a qualidade de vida do peão em Lisboa.

4 comentários:

  1. Tudo isto é verdade e tudo isto é triste!

    Ou li mal ou faltou este ilustre cidadão dizer que quando há passeios, nem sempre por lá se pode circular, porque muitos desses espaços da cidade estão pejados aleatoriamente de carros.

    Acho que a cidade foi construída a pensar em NADA! Veja-se o exemplo abaixo da Rua Andrade, Anjos.

    Se os autarcas construíssem uma cidade para os carros, para além dessas vias rápidas pelo meio dos bairros, construíam-se parques em silo, térreos, nos prédios para se evitar a vergonha do estacionamento selvagem que assistimos em cada dia a qualquer hora, nas nossas cidades.

    Autarcas competentes e autoridades municipais, tudo isso existe?

    Temo que a cidade vá ficar inadequada para o cidadão, quando já não se poder andar de carro nem em transportes públicos (€), e nem a pé!

    Felizmente ficaremos com as “auto estradas” para as bicicletas.

    LC

    ResponderEliminar
  2. Lisboa não tem cura.
    Não são só os que nela entram e dela saem todos os dias (e que, por isso, não a estimam). São também os inúmeros moradores que se comportam como vândalos, estando ainda no estado civilizacional correspondente àquele em que se urinava em plena rua.
    Do outro lado do espectáculo (os poderes públicos que, no que toca ao caos de Lisboa, brilham pela omissão), estão as personagens que são "partenaires" compatíveis com os grunhos atrás referidos.

    ResponderEliminar
  3. Forte presença do Passeio Livre com referência e fotografias na RTP - programa Sociedade Civil:

    http://ww1.rtp.pt/programas-rtp/index.php?p_id=23283&c_id=1&dif=tv&idpod=72507

    Atenção ao que o Sr. Comissário diz: vale a pena denunciar situações de polícia a prevaricar no página do facebook. Não se esqueçam que é importante a matricula a hora e o local.

    ResponderEliminar