É a cultura, estúpido!

[...] é que os portugueses têm uma maneira de estar na estrada que é exclusivamente deles. Ou, como agora se escreve, e neste caso muito a propósito: que é exclusivamente sua (sim, sua).


[...] O Código da Estrada, para os portugueses, é como qualquer código contemporâneo do de Hamurábi: destina-se aos investigadores estrangeiros, tem um valor sobretudo histórico e científico, e é de todo indecifrável. Serve para resolver disputas nos tribunais quando os deuses malévolos originam o azar de um «desastre» (repara-se na carga fatal e cosmológica da palavra, ilibando a mera condição humana de qualquer responsabilidade) e, como tal, é um oráculo como qualquer outro Delfos.


[...] todos os portugueses adoram passeios. Os automóveis, sobretudo. Mesmo quando estacionam, gostam sempre de pousar duas rodazinhas sobre o passeio, num gesto de afecto em tudo igual ao de pôr um braço fraterno por sobre os ombros de um amigo. E a razão que leva os peões de Portugal a andar no meio da estrada não é outra: passeiam como automóveis pela via fora, porque os automóveis se agacham ternamente sobre todos os passeios disponíveis, guardando ciosamente o torrãozinho de cada um.


Miguel Esteves Cardoso, A causa das coisas, Assírio e Alvim, 1986

1 comentário:

  1. Ah, malandros, que me preparava para publicar isto no meu blogue! Melhor assim, já está o trabalho feito! :))
    1986!! Há 23 anos... A data é muito importante. 1986 foi antes do grande crescimento do parque automóvel em Portugal... É muito provável que nessa altura ainda houvesse lugares de estacionamento de sobra para toda a gente. O que, mais uma vez, confirma que se trata de uma questão cultural... Como explica o MEC.

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